3 de maio de 2014

Português brasileiro: a língua com objeto oculto

Hoje eu vou dar uma (pequena) aula de português (brasileiro) antes de começar a aula de alemão.

Acho que todo mundo aprende na aula de português o que é um sujeito oculto. A gramática diz que um sujeito oculto é aquele que não é mencionado expressamente na oração, mas que é reconhecido através da desinência verbal.

Por exemplo: Estudamos alemão. (Nesse caso se sabe que o sujeito é "nós", por causa do verbo)

Acrescentaria ao sujeito oculto aqueles casos em que se sabe o sujeito através do contexto (informações contidas no texto):

Ex.: Pedro foi ontem à festa com amigos. Ao chegar lá pediu uma cerveja. (Se tomássemos a forma "pediu" fora de contexto, não seria fácil descobrir o sujeito, já que esta forma pode se referir a várias pessoas do discurso. Mas no contexto é possível inferir que o sujeito de "pediu" é "Pedro").

Isso é possível em línguas como português e espanhol, mas não é possível em línguas como inglês, alemão ou francês. Nessas últimas não existe sujeito oculto. Ele só é omitido em raros casos (como em orações coordenadas).

Ex.: Pedro war gestern mit Freunden auf einer Party. Als er dort ankam, hat er ein Bier bestellt. 
(Em alemão, o sujeito er tem que ser mencionado, e só pode ser omitido em casos como "Er arbeitet und wohnt hier")

Bem, mas vocês já ouviram falar em objeto oculto?
Pois bem... a nomenclatura eu dei pra facilitar o entendimento, mas na Linguística a gente dá outro nome para isso (que não vem ao caso agora).

O português brasileiro oral contemporâneo tem passado por muitas transformações. Um dos fenômenos do do nosso português atual foi o desaparecimento dos pronomes do caso oblíquo de terceira pessoa (o, a, os, as) na fala dos brasileiros e sua substituição por formas idênticas às dos pronomes do caso reto (ele, ela, eles, elas).Refiro-me ao português brasileiro, pois os portugueses ainda usam os pronomes do caso oblíquo com muito mais frequência na oralidade. No Brasil, ele é usado muito raramente na oralidade, quase sempre em linguagem muito formal (como em discursos) ou em casos corrigidos inúmeras vezes pelas professoras de português (como em "Eu a vi" em vez de "Eu vi ela")

Ou seja, a grande maioria dos brasileiros, independente de grau de formação escolar, prefere dizer: "Eu convidei ele" em vez de "Eu o convidei".

Só que esse objeto só é mencionado expressamente com seres animados. Quando o objeto do verbo é um ser inanimado, o mais comum entre os brasileiros é não usar nenhum objeto, deixar a frase sem objeto direto, ou seja, com um objeto oculto, percebido só através do contexto.

Vou dar aqui vários exemplos:

a) Você leu o livro que te emprestei? - Li. (Em vez de dizer "Li-o" ou "Eu o li", dizemos apenas "Li.")
b) Ai, amiga, comprei o novo CD da Rihanna! - Comprou, foi? Adoooooooro. (Em vez de dizer "Comprou-o?" e "Adoro (isso)", preferimos usar os verbos sem objeto.)
c) Sabe aquela cerveja que você trouxe da Alemanha? Já bebi todinha. (Em vez de dizer "Já a bebi toda", preferimos deixar o objeto oculto)

Em todos os casos acima, a omissão do objeto não atrapalha o entendimento da mensagem, já que o contexto ajuda a saber do que se trata.

Já tinham parado pra pensar nisso? Pois é. Apesar de os conservadores e puristas de plantão dizerem que não usar os pronomes oblíquos é "errado" ou "linguagem pobre", a língua muda e essa omissão faz parte da tendência de economia linguística. (ou seja, dizer o mesmo usando menos palavras, menos sílabas, menos fonemas etc.)

Dito isto, agora posso comentar um erro CLÁSSICO de brasileiros estudando alemão (e inglês, francês, espanhol etc.).

Os pronomes do caso oblíquo (ou pronomes objeto) também não podem ser omitidos no alemão padrão.

Ou seja, se alguém te perguntar:
a) Hast du das Buch gelesen, das ich dir geliehen habe?

Você não pode dizer apenas: Ja, ich habe gelesen. Obrigatoriamente você tem que dizer "Ja, ich habe ES gelesen".

Se alguém disse que comprou o CD da Rihanna e você quiser dizer que adora a Rihanna, não dá pra simplesmente dizer "Adooooooro" e traduzir como "Ich liebe". Não pode deixar a frase sem objeto. Você tem que dizer "Ich liebe sie". Uma adolescente alemã talvez dissesse (numa tradução livre):

Echt?  Hast du die/sie wirklich gekauft? Das finde ich der Hammer! Wie geil ist das denn?
Ich liebe. - Frases sem objeto direto. Erro comum de brasileiros.


No McDonald's o slogan na Alemanha é "Ich liebe ES". Numa tradução livre para o português poderia ser "Adoro", mas preferiram traduzir "Amo muito tudo isso" no Brasil, já que "Eu o amo" ficaria muito esquisito. Na minha opinião, "Adoro" teria ficado bem melhor.

E no exemplo c) da cerveja, em alemão você não poderia dizer apenas "Ich habe schon ausgetrunken" (Já bebi). Teria que dizer "Ich habe ES schon ausgetrunken".

Ou seja, você tem que prestar atenção para não deixar frases sem objeto em alemão (nem em outras línguas que aprende, quando for obrigatório). Isso é um trabalho grande a ser feito, já que nós, brasileiros, nos acostumamos a falar menos e deixar o contexto ajudar.

Existem algumas maneiras de usar o objeto direto sem parecer tão artificial pra gente.

Uma bem comum dos alemães é usar os pronomes demonstrativos (na função de objeto). Os pronomes demonstrativos têm quase sempre a mesma forma dos artigos definidos (der, die, das).

Se alguém te perguntar:
Wie findest du die neue CD von Rihanna? (O que você acha do novo CD da Rihanna?)
Die finde ich super. (Acho ótimo)

Em vez de começar a frase com o sujeito (ich), você já começa pelo objeto (die), evitando que você esqueça de mencioná-lo depois. O uso do pronome demonstrativo (die) em vez do pronome pessoal (sie) é algo muito comum na Alemanha, especialmente em início de oração.

Wo hast du dein Fahrrad gekauft? (Onde você comprou sua bicicleta?)
Das habe ich auf dem Flohmarkt gekauft. (Comprei no mercado de pulgas)

O mesmo dá pra fazer com substantivos de outros gêneros. Como Fahrrad é do gênero neutro, usa-se das. Também seria possível usar o pronome "es", mas este viria obrigatoriamente após o verbo. Observe que eu traduzi os dois últimos exemplos acima sem objeto direto na frase em português. Isso foi de propósito, pois é bem comum falarmos assim mesmo.

Ich habe es auf dem Flohmarkt gekauft.

Atenção: Na linguagem coloquial, é comum a omissão do sujeito ou objeto, até mesmo em alemão, desde que este ocupe a primeira posição da oração. Na internet ou SMS é comum eliminar vários sujeitos para economizar espaço na mensagem.

Exemplos:

Em vez de enviar um SMS com "Ich bin am Hauptbahnhof", a pessoa pode enviar um SMS com "Bin am Hbf". Apesar de a frase ser totalmente compreensível, a forma verbal "bin" sem o sujeito "ich" não é considerada  completa no alemão padrão. Numa redação da escola, você pode repetir o "ich" quantas vezes forem necessárias.

Se alguém te perguntar:
Na, wie findest du meine neue Frisur? (E aí? O que você acha do meu novo penteado?)
Você pode responder de várias maneiras:
a) Linguagem padrão: Ich finde sie sehr schön.
b) Linguagem padrão (comum na oralidade): Die finde ich sehr schön.
c) Linguagem coloquial: Ø Finde ich super schön. (Eliminação do pronome inicial "die". A prova de que o objeto é oculto é que a ordem da frase não muda. Primeiro vem o objeto oculto, depois o verbo conjugado que continua na posição II. A palavra "super" é típica da linguagem coloquial.

Um exemplo de sujeito oculto
em alemão na linguagem da internet
 "(Das) gefällt mir"
Para terminar:

Antes de saírem colocando objetos até onde não existe, preste atenção se o verbo requer um objeto ou não (seja no dativo ou no acusativo). Vale lembrar que em alemão há verbos intransitivos também, sem nenhum objeto.

Ex.: Ich arbeite. (Eu trabalho - não há necessidade de acrescentar um objeto aqui)

9 comentários:

  1. Nossa, nunca tive uma explicação tão clara/direta sobre esse tema e meio que passei a utilizar "es" como objeto oculto inconscientemente, de tanto as pessoas me corrigirem. Mas no final não entendia o porquê. Valeu pela explicação, agora sim compreendi! :)

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    1. Bitte schön! :-)

      Só tem que tomar cuidado quando o objeto for masculino (ihn/den) ou feminino (sie/die) :) Nem sempre se usa "es" :-)

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  2. Muito interessante! :-)

    Mas tenho ainda uma pequena dúvida - um exemplo bem simples: o "Mir ist kalt" se enquadra em sujeito oculto? Não ficaria faltando algo, tipo: Mir ist es kalt? Ou o sujeito seria o "kalt"?

    Um abraço!

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    1. A sensação de faltar algo é comum. :-)

      Mas neste caso são construções impessoais (sujeito indeterminado): É como se você estivesse dizendo :"Está frio pra mim". Verbos que indicam fenômenos climáticos geralmente são impessoais.

      Mesmo que ali estivesse um "ES", a frase continua sem "sujeito" (propriamente dito), pois não há como ter um sujeito em "fazer frio". :-) O "es" ocuparia apenas a vaga do nominativo, mas não é bem um "sujeito".

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    2. Acho que nesse caso há duas possibilidades, ou você diz: "Es ist mir kalt" (nesse caso o "es" é obrigatório, pois o verbo tem de estar na segunda posição) ou "Mir ist kalt", sem "es",

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    3. Acho que nesse caso há duas possibilidades: Es ist mir kalt ou Mir ist kalt. Na primeira o "es" é obrigatório, pois o verbo tem de estar na 2ª posição. Na outra o "es" é desnecessário e não é utilizado. Isso também é típico no passivo com dativo: Es wurde mir geholfen - Mir wurde geholfen.

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