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20 de novembro de 2014

Negro, brasileiro, na Alemanha: Haut - por Maurício Virgens

HAUT

Essa semana como de praxe eu estava vendo o que meus amigos do facebook postavam... E me deparei com umas fotos de uma conhecida minha de lá da Bahia.... Bastante maquiada e "produzida" até o último fio de cabelo (alisado, por sinal!), eu notei porém que nos selfies a pele dela estava mais clara. Na verdade não era a primeira vez que eu havia notado isso. Na outra ocasião eu cheguei a comentar pessoalmente minhas observações, cheguei a dar uma dica pra ela de onde comprar uma base de acordo com nossa quantidade de melanina (maquiagem da mesma marca que eu uso quando estou trabalhando no palco). Masss... Ela se explicou... "Não... É que eu tenho uma doença de pele e daí eu uso uma base mais clara pra escondê-la..."

Doença de pele. Aham... 😒

Essa sensação de estar com uma doença de pele eu já tive algumas vezes na vida. Uma das primeiras e mais marcantes foi lá nos meus dezoito anos, quando um novo shopping pra classe alta estava sendo inaugurado em Salvador, o Shopping Barra. Eu e minha irmã nos candidatamos para trabalhar numa loja pra grã-finos chamada Chocolate. Alguns de vocês provavelmente não têm ideia do que significava a expressão "boa aparência" em um anúncio de jornal naquela época, mas... Como nós dois éramos conscientes de nossas belezas afrobrasileiras (tínhamos aqueles penteados de Grace Jones, roupas tipo negões de Nova Iorque... éramos até manequins... Era moda naquela época, não riam!)... Então fomos lá apresentar nossos currículos que também não deixavam nada a desejar para recém-graduados de escola particular.

Passamos pela seleção curricular, fizemos uma bateria de testes de matemática, de português, de contabilidade básica, físicos, psicológicos... Até que na última fase, a funcionária da empresa, não tendo mais nenhum argumento que pudesse embasar alguma falta de qualificação nossa pra ser vendedor de loja, nos disse finalmente que não nós tínhamos o perfil da empresa. Perguntamos que perfil era aquele... Ela olhou pra a nossa pele. Doentes de pele não satisfazem perfil de loja de grã-fino. Danke für den Hinweis!! 😳

Passaram-se alguns anos. Eu já estava cursando arquitetura na UFBA. E ocorreu de minha turma viajar para São Paulo, creio que para um congresso de arquitetura. Comprei minha passagem de avião parcelada em juros a perder de vista... Chegamos todos no aeroporto um pouco em cima da hora para pegar o vôo, que por estar lotado, fomos alocados na primeira classe (até hoje eu não entendi o porquê daquele upgrade gratuito...). Estávamos então todos eufóricos, nos sentindo ricos e famosos... Até quando a aeromoça, ou melhor (como se diz na primeira classe) a Stewardess começou a fazer a contagem dos passageiros, e ao me ver sentado ali naquela poltrona de couro, parou e fez uma expressão de? 😒... Isso mesmo! De quem está vendo alguém com uma doença de pele. 

Dito e feito. Ao fazer o serviço de bordo, me serviu por último(!!) e para arrematar o tratamento VIP, me deu um prato com comida estragada. Chamei-a: "Com licença, a comida está estragada, me traga uma outra, por favor!"... "É a última que temos, senhor!" - com um sorriso sarcástico... "Então pode levar de volta, obrigado!", respondi me sentindo o cocô do cavalo do bandido preto que nem apareceu no filme de cowboys caucasianos.

Se não são sadios de pele, que comam comida estragada! Parafraseando a frase atribuída erroneamente(!!) a Marie Antoinette "S'ils n'ont plus de pain, qu'ils mangent de la brioche!"


Eis que anos depois, tive aqui na Alemanha um déjà-vu.

Eu tinha um compromisso profissional em uma cidade a quase 4 horas de distância de Colônia, onde moro, e pra isso acordei bastante cedo. Só que por azar (ou por ansiedade) me levantei com aquela dorzinha de cabeça querendo começar... Botei então meus óculos escuros e passei numa farmácia antes de pegar meu transporte. Entrei na loja e me dirigi direto ao balcão quando percebi que uma das atendentes já me media dos pés à cabeça... Com aquele certo olhar de quem está vendo um? 😒... Isso mesmo!! Um doente de pele!

Pensei: "Curioso! É raro eu receber este tipo de olhar assim tão explícito aqui na Alemanha... Ela não se deu conta que eu apesar dos óculos escuros a estou vendo... Hmmm... É nela que eu vou comprar minha aspirina!". Dito e feito. Foi intrigante ver suas expressões faciais irem se mudando ao tempo em que me atendia e percebia meu nível de alemão, minhas "boas maneiras", minha carteira que (por coincidência ao contrário de outros dias!!!) estava relativamente gorda... Eu me senti como naqueles filmes de temática religiosa nos quais as feridas dos leprosos vão desaparecendo pelo toque de algum santo... Senti que minha pele se curou em dois minutinhos de atendimento.

Doença de pele se cura com domínio do alemão e boas maneiras? Será que foi isso? 

Pra lhes dizer a verdade, nesta altura de minha vida... Mir ist wurst! Pra mim tanto faz como tanto fez a resposta a essa pergunta... Eu me amo como eu sou. Eu amo ser preto. Amo minha pretitude, amo minha negritude, amo minha baianidade nagô. Me sinto muitíssimo confortável em minha própria pele... meu olhar sobre minha ancestralidade e minha cultura afrodescendente são extremamente saudáveis.

Sim, Mauricio... Mas dá pra ir ao ponto da questão, bitte? Danke!

Ok, Leute... Seguinte. Estou passando mais uma semana da consciência negra em terras alemãs... Minhas reflexões sobre ser afroconsciência porém não são coisas de uma semana... Elas fazem parte de meu dia a dia. Ao contrário de minha juventude, quando volta e meia eu ouvia "mas você não é preto/negro... Você é moreno!", aqui na Alemanha não tem meias palavras quando se trata de identificação étnica. Eu adoro ser enxergado, visto, tratado como afrodescendente, como preto. Sem maquiagens, sem mesticismos, sem teorias sobre "boa aparência" e sobretudo, sem morganfreemismos. (Sim, estou falando daquele excelente ator African American que propõe que se deixe de celebrar a consciência negra, que se esqueça que existem negros e brancos como solução para o racismo no mundo. Pra vocês verem que como cientista social ele é um excelente padeiro).

Na última vez que estive em Salvador eu passei novamente no Shopping Barra, e em outros shoppings com lojas pra grã-finos... A tal butique Chocolate já não existe há anos... Deve ter falido... Ou a dona muito provavelmente se mudou pra Miami. Mir ist wurst... O que vocês não imaginam é como me foi prazeroso ver funcionários pretos e pretas lindíssimos trabalhando nas lojas. Pretitude linda e afrocentrada. Eu sei que ainda é pouco. Mas não posso deixar de comparar com o nada de quando eu tinha dezoito anos, onde havia o estúpido consenso da doença de nos considerar doentes de pele.

Mas então vamos salvar o resto do mundo, vamos sair às ruas, levantar bandeiras, vamos desinfetar o outros desta doença de "ver doença na pele não-branca".... We are the world.... We are the children, we are the ones who make a brighter day sOHWAIT!!!!! Es tut mir Leid, mas não tem como salvar os pacientes terminais! Existem doentes sociais que estão em estado crônico sem possibilidade alguma de cura. Ainda mais sendo o racismo uma doença social com "predisposição genética".... 

Como é que é?

Desenhando: há séculos atrás, existia uma família branca e feliz que via a "pele escura" como defeito/sujeira/imperfeição/negatividade. Aí eles se amaram e procriaram... E seus filhos aprenderam pelas historinhas de seus pais e avós os mesmos conceitos sobre "pele escura". E eles se amaram e eles também procriaram... Um dia, o rei e a rainha perceberam que ao tempo em que se multiplicavam viam que manter esses conceitos sobre "pele escura" garantia o seu poder em todo o reino. Então eles declararam "pele escura" como uma doença fatal! Mas como a rainha era muito esperta ela disse: "não podemos abrir o jogo, senão esses "peles-escuras" vão se insurgir e nos tirar do poder... Vamos fazer de conta que tá tudo bem?" E todos os seus súditos regozijaram com a inteligência de seus soberanos... E desde então tentam viver felizes para sempre.

Eu acredito porém, que a realidade fora dos contos de fadas apresenta um futuro desanimador para o "rei e a rainha". É somente questão de tempo até os "genes" virarem recessivos de geração em geração até que em algum futuro próximo nasçam pessoas sãs e salvas... Até lá, todos os pacientes terminais já aussterben (dá uma googlada pra ver o significado 😉)

Mas vamos ser otimistas. Talvez para alguns valha realmente a pena um tratamento de choque. Eu, por exemplo, já salvei três vidas nestes meus 20 anos de internet. Mesmo convivendo involuntariamente com um ou dois "casos perdidos", uma estatística pra mim animadora, pois os "curados" têm potencial multiplicador de saúde social. 

"É, mas você não vive a realidade brasileira, você blá blá blá mimimimi whiskas..."

Talvez você tenha razão. A distância da realidade brasileira tentou anos a fio "qualificar" minha pele como doença, e por caridade judaico-cristã a chamavam de "pele morena"...

"Ohhh... Você não é doente não, só está com uma gripezinha...!" 😱

... talvez o afastamento deste ar pseudo-europeu que vocês na terrinha brasilis respiram tenha me curado.

A estrutura alemã me dá a única possibilidade de ser quem eu sou. E como eu amo ser preto... Logo minha vida aqui, em comparação com a no Brasil, está sendo sopinha no mel. 

Uma curiosidade pra concluir... Escrevi este texto um dia inteiro, e entre um ou outro parágrafo eu tive que ir dar uma aula de canto...  No caminho de volta pra casa, entrei no metrô, e notei que havia fiscais... (Diferente do Brasil, aqui não existem catracas. As máquinas que emitem tickets estão à disposição para o passageiro honesto comprar seus bilhetes. Acontece porém de vez ou outra aparecer um funcionário à paisana (ou não) para fazer a fiscalização. Como já disse uma vez numa outra crônica, a expressão alemã para "viajar sem bilhete" é "schwarz fahren".)

... Eis que hoje havia um funcionário da companhia de transportes com a pele "negra como a noite" controlando a validade dos bilhetes dos passageiros. De súbito pensei... 

"Wie geil ist das denn! Ein schwarz-wie-die-Nacht-Kontrolleur auf der Suche nach Schwarzfahrern! (Que irado!!! Um fiscal preto como a noite à procura de passageiros viajando no preto!)

... O rapaz era belo, parecia um príncipe africano. Ele chegou pra mim, me olhou e sorriu. Um olhar de saudável para saudável. Em um átimo de segundo nos identificamos por nossas peles sem doenças e nos vimos socialmente com saúde pra dar e vender. Sorri de volta, mostrei meu bilhete e continuei a observá-lo andando calma e elegantemente pelo corredor do metrô... Um príncipe, sem dúvida!

Cheguei em casa com uma sensação maravilhosa de pertencer a uma irmandade preta. Só nós, pretos e pretas com saúde, podemos saber o que significa encontrar um/a outro/a preto/a que nunca vimos e nos sentir num ilê. Estejamos em qual país for... Nos conecta a certeza de que nossas histórias pessoais não são diferentes. A consciência de que somos sadios de pele é o que nos une.

Doença de pele... Aham... Nenhum olhar doente racista vai conseguir tirar a saúde de nossas peles!

Eu já chamei o SAMU pra irmã que usa maquiagem em tom mais claro por pensar estar com doença de pele... Acredito que ela estará se convalescendo em breve... Mas é pra nós, afrocentrados, irmãos e irmãs de peles sadias e ululantemente pretas, sem maquiagens, sem mentiras históricas, óbvias nas realezas de nossas ancestralidades africanas que eu dedico essa crônica de 20 de novembro. 


2 comentários:

  1. pelas bandas holandesas: schwarz fahren = zwartrijden.
    Parabens pelo texto.

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  2. Ótimo texto negão como se diz em São Paulo é nóis

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