Já ouvi muita gente dizer que tem medo de estudar alemão apenas por conta da famigerada, aterrorizante, amaldiçoada declinação.
O engraçado é que nunca achei a declinação do alemão "incrivelmente difícil a ponto de me fazer desistir de estudar alemão apenas pelo fato de ela existir". Eu acho até engraçado ouvir que pessoas desistem ou não estudam alemão APENAS por esse motivo. Já fiz muitos tópicos sobre declinação aqui tentando desmistificá-la. Este tópico é dedicado a quem ainda tem medo de estudar alemão por causa das declinações e a quem é iniciante no alemão e que está "sofrendo" com elas.
1) Há resquícios de declinação também no português.
Na maioria das línguas as palavras podem ser flexionadas. Existe a flexão verbal (de verbos) e nominal (de substantivos, artigos, adjetivos, pronomes etc.). Uma das formas de flexão verbal é chamada de "conjugação". O português (e todas as línguas românicas) herdaram do latim um sistema bem complexo de conjugação. Há conjugações incrivelmente irregulares (um falante nativo português não tem a menor dificuldade de identificar formas como "v
ou, fui, fosse, vá, for, ia etc." como sendo formas conjugadas de um mesmo verbo. Um estrangeiro tem que se "matar" decorando essas formas)
"Declinação" é uma das formas de flexão nominal. Há flexões nominais que não são "declinações". Marcar o plural de um substantivo é flexioná-lo (marcando o número), mas não é declinação. Declinar uma palavra é atribuir uma marca (pode ser um sufixo ou uma alteração na forma da palavra) indicando uma determinada função que esta palavra exerce em relação às outras.
No português (ou até mesmo em inglês) a declinação sobrevive apenas nos pronomes pessoais. Qualquer falante do português sabe dizer frases como "
Eu gosto da Joana, mas ela não gosta de
mim" ou "
Eu conheço a Maria, mas ela não
me conhece". De forma natural, mesmo antes que regras nos fossem ensinadas na escola, nós sabíamos que depois da preposição "de", a palavra "eu" se transforma em "mim". E que a palavra "eu" se transforma em "me" como objeto do verbo "conhecer". Isso nós usamos de forma tão natural quanto um alemão declina outras palavras. Isso é declinação. É marcar numa palavra a função sintática que ela exerce em relação a outras palavras.
2) Os substantivos em alemão mal mudam de forma
Eu até entenderia o medo das declinações se a língua alemã tivesse 10 casos e os substantivos alemães mudassem de forma em cada caso. Em russo, por exemplo, os substantivos são declinados em 6 casos diferentes. Em russo também há três gêneros (masculino, feminino e neutro). O pior de tudo: além de os substantivos receberem uma série de terminações diferentes em cada caso, a sílaba tônica também muda dependendo da palavra, tudo sem muita regra. Uma russa amiga minha disse que nem eles mesmos sabem o porquê dessas mudanças de sílaba tônica. Os substantivos do latim também recebiam terminações ao fim da palavra, da mesma forma que conjugamos um verbo.
No alemão, os substantivos quase não se alteram ao serem declinados. Resumidamente, os substantivos alemães só recebem um -S (ou -ES) no genitivo singular (e só os masculinos e neutros.. os femininos nem isso) e recebem um -N no dativo plural (com exceção dos que fazem o plural em -S). Falei grego? Vou dar um exemplo.
Tomemos a palavra "mulher". Observe a declinação em latim:
Agora observe a declinação em russo:
Perceberam que em ambos os casos acima, houve várias terminações diferentes?
Pois bem, vejamos em alemão:
Além de ter dois casos a menos, se você observar cada coluna separadamente, verá que a palavra permanece na mesma forma em todos os casos.
Agora vejamos um exemplo de um substantivo masculino (Lehrer = professor) para exemplificar as regras que falei acima. (-S no genitivo singular e -N no dativo plural).
Em alemão também há um grupo de declinação chamado "declinação-N" cuja característica básica é terminar sempre em -N, com exceção do nominativo singular. Veja no exemplo (
Biologe = biólogo):
Há também outras palavras que raramente declinam. Em russo até os números entram na declinação. No alemão, apenas o número um (ein, eine etc.). Os números zwei e drei também podem ser declinados no dativo e genitivo, mas seu uso é bem mais restrito. Fora isso, os numerais permanecem invariáveis.
MORAL DA HISTÓRIA: Na verdade, os substantivos alemães sofrem poucas marcas de declinação. O medo gigantesco de declinar é infundado.
3) A falta de declinação nas línguas é suprida por outras estruturas
No português essas marcas se perderam nos substantivos, artigos, adjetivos e só sobreviveram nos pronomes pessoais. No latim, língua mãe do português, todos os substantivos mudavam de forma de acordo com a sua função. Quem estuda latim sabe que no latim havia 6 casos e as gramáticas dividem os substantivos em 5 grupos de declinação. Como nós perdemos essas marcas no português, nossa língua passou a marcar essas funções de outra forma:
a) através de preposições:
o livro
do Paulo - Paulo
s Buch - Paulo
's book (a relação de posse do caso genitivo é expressa em português pela preposição
de)
Dei um livro
para o Paulo - Ich habe Paulo ein Buch gegeben - I gave Paulo a book / I gave a book to Paulo. (o objeto indireto "receptor" marcado pelo caso dativo no alemão é marcado em português pela preposição
para, em inglês ele é marcado pela ordem na oração - antes do objeto direto - ou pela preposição
to)
P.S. Cabe lembrar que "do Paulo" não significa dizer que no português há um caso genitivo. Haveria um caso, se substantivos da língua portuguesa como "Paulo" sofressem alterações (sufixos, por exemplo) para indicar posse.
b) uma ordem mais fixa das palavras
Em português é possível dizer "O João te ama" e "O João ama-te", mas não dá pra dizer "Te ama o João", mesmo com a declinação marcada no pronome pessoal. A perda das marcas de declinação fez com que nossa língua congelasse com mais força a forma "Sujeito + verbo + Objeto" como forma de nós idenficarmos com mais rapidez quem exerce as funções sintáticas na oração. Ou seja, as palavras podem até não mudar de forma, mas a ordem delas é mais fixa.
Em inglês a ordem das palavras é também mais fixa: "João loves you" (não se diz "You loves John")
Em alemão há mais flexibilidade na ordem dos complementos (sujeito/objeto).
João liebt dich.
Dich liebt João.
Frases como "Dich liebt João" precisam ser traduzidas em português com mais palavras (algo como "É você que o João ama"). Apesar da frase "Dich liebt João" parecer artificial, há muitíssimos exemplos de frases começadas por objetos diretos ou indiretos em alemão. Não é algo tão incomum assim.
MORAL DA HISTÓRIA: Nossa língua eliminou muitas marcas de casos, mas para isso, outras palavras (preposições, por exemplo) e uma ordem menos maleável das palavras na frase servem para indicar as funções exercidas pelas palavras.
Se substantivos alemães quase não sofrem alteração, o que mais muda com as declinações?
Os que sofrem mais transformações são as palavras que acompanham os substantivos, ou seja, adjetivos, artigos e pronomes.
Por exemplo, vamos tomar como exemplo o artigo definido FEMININO:
Caso |
Singular |
Plural |
Nominativo |
die |
die |
Acusativo |
die |
die |
Dativo |
der |
den |
Genitivo |
der |
der |
Apesar de isso parecer algo como 8 artigos diferentes, se observarmos bem só são três formas diferentes: DIE (na metade de cima da tabela), DER (na metade de baixo) e DEN (no dativo plural, que sempre termina em -N de qualquer jeito). Será que isso é realmente algo impossível de se aprender como muitos saem pintando por aí? O.o
Pois bem, consideremos que isso seja motivo suficiente para aterrorizar quem quer estudar alemão. Tá, eu sei, é um decoreba a mais do qual poderíamos todos ser poupados. Mas pensando bem, os artigos definidos femininos dessa tabela podem ser usados com TODOS os substantivos femininos da língua alemã. Ou seja, é muito mais fácil decorar formas de três artigos que podem ser usados para qualquer substantivos do que memorizar tabelas completas de declinação e sílabas tônicas (como é no caso da declinação russa). Além disso, depois de saber a tabela dos artigos definidos fica muuuuito fácil de aprender as outras, pois as terminações são praticamente idênticas.
Compare a tabela dos artigos definidos femininos acima com a tabela dos demonstrativos abaixo. Você verá que as palavras terminam com as mesmas letras.
Caso |
Singular |
Plural |
Nominativo |
diese |
diese |
Acusativo |
diese |
diese |
Dativo |
dieser |
diesen |
Genitivo |
dieser |
dieser |
Quando se abre uma gramática, a impressão que se tem é que se tem que aprender mais uma tabela cheia de palavras declinadas. Mas é só comparar com a tabela dos artigos pra ver que as terminações são idênticas.
Se mesmo depois de tudo isso ainda vierem com o argumento de "Ah, mas inglês não tem nada disso", o máximo que posso lhe dizer é "Mas afinal, você quer aprender inglês ou alemão?"
Se a declinação é algo tão simples quanto você quer transmitir, por que as pessoas dizem que é tão difícil?
Bem, a dificuldade do aluno iniciante alemão não é só aprender que der "vira" den. Eu acho que qualquer pessoa com o tico e teco (dois neurônios) funcionando consegue memorizar uma tabela de artigos. E não precisa de 3 anos para se aprender essa tabela. Acho que bastaria poucas horas para um aluno com mais dificuldade para aprender idiomas e alguns minutos para alunos com boa memória e mais motivados.
Acho que o que mais atrapalha o aprendizado das declinações é o incrível trabalho de memorização para saber se um substantivo é masculino, feminino ou neutro. E isso afeta especialmente os alunos iniciantes, pois esse primeiro contato com o idioma é o momento em que a pessoa tenta ganhar motivação para continuar. No alemão, os alunos inciantes se veem confrontados com um desafio de memorizar os gêneros e a forma do plural de cada palavra já no início do curso, o que parece uma tarefa impossível. Então o desânimo vem qdo o aluno troca um "der" por "die", ou um "den" por "dem", não pela falta de conhecimento das tabelas, mas pela simples dúvida na hora de saber o gênero da palavra em questão.
Além disso, a declinação dos adjetivos é um capítulo da gramática que requer atenção e exercício. Mas os princípios que governam a declinação dos adjetivos também são relativamente simples.
Isso tudo infelizmente eu não tenho como mudar no idioma alemão. Se eu pudesse, tornaria tudo mais fácil. Mas só posso garantir que não é impossível, não. Há muito brasileiro e português que fala alemão. Não duvide da sua capacidade de aprender alemão!
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